Quando o médico Dráuzio Varella atacou o uso de ervas e fitoterápicos
na série “É bom pra quê?”, exibida no Fantástico, em 2010, finalmente
fez florescer na cineasta Zienhe Castro uma ideia que havia sido
plantada há tempos. Revelar a todos a tradição milenar do uso de ervas
na Amazônia, de uma forma completa e despida de preconceito.
“Este episódio só reforçou a vontade de lançar o documentário. Achei
desrespeitoso ele colocar tudo no mesmo saco e dizer que tudo é
charlatanismo. A questão é complexa, mas creio que é possível um
diálogo, sem invalidar o conhecimento milenar das ervas medicinais”,
afirma.
A resposta veio na forma do curta “Ervas e Saberes da Floresta”, que
teve sua pré-estreia no último dia primeiro, durante a noite de
comemoração do centenário do Cine Olympia. Segundo a diretora, a
pesquisa para realização do filme consumiu sete anos, influenciada por
suas experiências pessoais. “Cresci tomando banho de cheiro, acreditando
em simpatia e mandinga. As ervas, os chás, as garrafadas fazem parte da
nossa cultura e dizem muito a respeito do que somos e acreditamos.
Fazer o documentário foi uma forma de me definir também”, explica.
O filme mergulha num universo complexo de valores e tradições
místicas para investigar o uso de ervas medicinais na Amazônia. As
filmagens percorreram Belém, Santarém, Oriximiná, Igarapé Miri, São João
de Pirabas e Ilha do Marajó. Durante a viagem, a equipe ouviu
pesquisadores, médicos, erveiras e mateiros.
O projeto foi classificado entre os 100 melhores roteiros
cinematográficos do Brasil para documentários no edital do Ministério da
Cultura e também entre os 20 roteiros selecionados pelo edital de
audiovisual do Programa Petrobras Cultural em 2010. “Ervas e Saberes da
Floresta” se prepara para virar um longa, que deve estrear no ano que
vem.
Sob a nova perspectiva, a diretora fala em entrevista ao VOCÊ sobre a produção do curta e a sua jornada para filmá-lo.
Vez e voz às mulheres
Como surgiu teu interesse pelo tema e quando teve início a pesquisa?
R - Em 2003, durante um seminário ocorrido em Belém, organizado pela
Casa de Estudos Germânicos, sobre Ervas da Amazônia. Lá eu conheci o
Wagner Barbosa, professor de Farmácia da UFPA (Universidade Federal do
Pará) e comecei a escrever o projeto. Foi uma pesquisa de quase cinco
anos, com a orientação e colaboração do professor, que estuda e mapeia o
estado do Pará na sua pesquisa acadêmica. Ele foi fundamental para o
desenho final do roteiro e escolha das locações. Rodamos o filme em
abril de 2011 durante três semanas. Percorremos vários municípios e
diversas comunidades quilombolas e ribeirinhas da Amazônia paraense,
entre eles, Oriximiná, Soure, Salvaterra, Santarém e Alter do Chão.
P - Como a população utiliza as ervas no Pará?
R - Existem muitas associações da sociedade civil organizada
cultivando hortas e produzindo remédio “caseiro” com as ervas
medicinais. Laboratórios artesanais em várias localidades. Existe o uso
medicinal e o uso místico.
P - De onde vem essa tradição?
R - A raiz de tudo vem dos povos indígenas e sofre forte influência
africana. E a religiosidade permeia quase todas as práticas e usos. Têm
até médicos, padres e freiras da igreja católica coordenando projetos de
hortas medicinais e laboratórios de produção de xaropes e cápsulas
naturais.
P - Durante as filmagens, o que mais te chamou atenção nesses locais?
R – A forte presença da mulher. A força, a determinação, a união e a
perseverança das mulheres amazônidas. São lugares inóspitos, sem nenhuma
condição favorável, e elas acreditam veementemente que vale a pena
cultivar, manter as tradições e o uso milenar desses saberes. É
incrível!
R - Qual é seu objetivo com o filme?
R - Resguardar e dar vez e voz as mulheres depositárias desse saber
milenar. Nos centros urbanos tudo já se perdeu e se misturou, mas nas
comunidades caboclas ainda se tem muito respeito pela sabedoria das
curandeiras. Elas são consideradas em muitas comunidades as “médicas da
natureza”, muitas vezes só há elas para atender uma urgência. O registro
das práticas também é importante para o nosso acervo cultural. Esse
tema é urgente e importante para salvaguardar a nossa cultura e
identidade, enfim, preservar as nossas tradições.
P - Em 2010, a série ‘É bom pra quê?’, da rede Globo, em que o médico
Drauzio Varella investigou o uso de ervas e fitoterápicos, provocou
controvérsias e a reação imediata de milhares de farmacêuticos e
entidades ligadas à saúde em todo o Brasil, ao colocar em xeque a
credibilidade da Política Nacional de Fitoterapia, adotada pelo
Ministério da Saúde. Qual a sua opinião a respeito da política e da
abordagem defendida pelo médico, deflagrada em rede nacional?
R – Achei extremamente radical e preconceituosa. Vou mais longe,
achei desrespeitoso ele colocar tudo no mesmo saco e dizer que tudo é
charlatanismo. É um pouco irresponsável. Acho correto ter os cuidados
necessários com o uso de qualquer tipo de medicamento, seja ele
alopático, homeopático ou, ainda, fitoterápico. Este episódio,
inclusive, só reforçou a vontade de lançar o documentário. A questão é
complexa, mas creio que é possível um diálogo.
P - Como pesquisadores encaram esse uso?
R - Existem grupos de pesquisa em todo o Brasil coordenados pela
Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz, ligada ao Ministério da Saúde) com um
trabalho muito sério neste segmento. Participei de alguns encontros
promovidos pelo Ministério da Saúde, em parceria com a Fiocruz, e fiquei
muito impressionada. Encontrei médicos que já dialogam com essas
práticas e validam o uso de algumas plantas e óleos, e incentivam o uso
nas comunidades. Inclusive existe uma lista de 70 fitoterápicos com uso
autorizado pelo Ministério da Saúde e Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária). Estamos avançando.
P - Que contribuições, na sua opinião, o documentário dará para o tema?
R - Acho arrogante de minha parte acreditar que o filme possa
contribuir efetivamente no âmbito da validação desses saberes, mas
acredito na força e na verdade dessas mulheres. O meu recorte é de
gênero, é antropológico. Quero propor uma reflexão sobre o valor
cultural desse saber tradicional e dessas mulheres que acumulam e
transferem esse conhecimento ancestral. O material que temos é tão vasto
e rico, que fui convidada por uma produtora do Sul para finalizar uma
versão em longa-metragem que será lançado em 2013. Que os poderes da
encantaria da Floresta digam amém!
Diário do Pará, quinta-feira, 24/05/2012